PROJETO LIVRO DE RPG (SEM NOME DEFINIDO)
Por: Noah Edward
Personagens:
Ainda sem resumo, segue primeiro capitulo sem título definido:
O som dos cascos do burro era o único ritmo constante naquela estrada esquecida entre campos. O sol começava a subir pelas colinas ao sul de Dondale, espalhando uma luz dourada sobre o Lago Bela Vista, que cintilava ao longe como se sorrisse de alguma piada antiga. A carroça rangia de tempos em tempos, pesada com sacos de grãos, tecidos e pequenas caixas marcadas com runas comerciais. Fiddrick, o gnomo dono da carga, cochilava sobre uma almofada improvisada de feno e pano velho, roncando baixo.
O grupo caminhava em silêncio. Nenhum deles era fã de madrugar, mas o combinado era sair antes do tráfego da estrada crescer. A missão era escoltar o gnomo até o Velho Moinho de Grãos, a dois dias dali. Tarefa simples, paga justa. Pelo menos era o que prometeram.
Kael caminhava à frente, olhos semicerrados, com a espada presa nas costas e a mão no pomo. O meio-elfo era o tipo que esperava problema mesmo quando não havia nenhum. Andava como quem já foi traído por estradas calmas antes.
Tissa vinha ao lado da carroça, atenta ao entorno. A tiefling mantinha os olhos nas sombras entre as árvores, faro aguçado para qualquer sinal de emboscada. O calor da manhã já fazia o couro colar no pescoço, mas ela não reclamava. Não era do tipo que reclamava. Só observava.
Naivara seguia mais atrás, sem pressa. A elfa parecia ouvir o vento e responder com um leve sorriso. A cada passo, as folhas dançavam ao redor como se tentassem acompanhar o ritmo dela. Uma pequena esfera de luz mágica flutuava discreta em sua palma esquerda — era mais um hábito do que uma necessidade.
Thorgar vinha por último, carregando um machado nas costas e uma garrafa d’água presa ao cinto. O anão não dizia nada desde que saíram dos portões de Dondale. Apenas mascava raízes amargas e caminhava firme, como se cada passo fosse um juramento silencioso de terminar aquele trabalho sem perder a paciência.
Brother Aldren caminhava ao lado de Fiddrick. O clérigo humano tinha os olhos baixos, lendo trechos de um pequeno tomo preso ao cinto por uma corrente. Suas orações vinham em sussurros, meio cantadas, num ritmo que soava mais velho do que qualquer um ali.
O campo era vasto, verde até onde os olhos alcançavam. Algumas torres distantes indicavam fazendas fortificadas, e pequenas vilas despontavam ao longe como pontos de cor na imensidão da paisagem. Nada parecia urgente. Nada parecia errado.
Mas naquela estrada, onde os arbustos começavam a crescer mais altos e as árvores mais densas, Tissa desacelerou. Olhos baixos, passos mais curtos.
Algo chamava atenção no chão. Rastros. Pisadas recentes, profundas. Gente com pressa, talvez fugindo. Galhos partidos em ângulos estranhos. Um cheiro leve de sangue seco, quase imperceptível.
Ela não disse nada.
Só ergueu uma sobrancelha e olhou para Kael.
Ele entendeu.
Kael se moveu com o mínimo de som possível, a mão deslizando para a espada. Ele sinalizou com dois dedos para a lateral da estrada — padrão que o grupo já conhecia. Tissa, sem fazer barulho, saltou do caminho de terra batida e desapareceu entre os arbustos. Aldren parou de rezar. Naivara recuou, um brilho suave formando no ar ao redor de seus dedos. Thorgar soltou um rosnado baixo e já levava a mão para o cabo do machado.
Fiddrick acordou.
— Hã? Que que foi?
Kael apenas ergueu a mão, espalmada. Silêncio. O gnomo arregalou os olhos e se encolheu na carroça, puxando uma manta sobre a cabeça, como se aquilo fosse mágica protetora.
Os primeiros vieram da mata esquerda. Dois homens, roupas sujas de barro e couro mal tratado, espadas curtas nas mãos. Rápidos, mas desorganizados. Salto direto na carroça.
Kael reagiu primeiro. A espada saiu num só movimento e cortou horizontalmente. A lâmina pegou o primeiro no abdômen, rente ao cinto, abrindo a carne como se fosse papel molhado. O sangue espirrou para o lado, e o homem caiu com um grunhido que não teve tempo de virar grito.
O segundo avançou direto em Thorgar. O anão deu um passo para o lado e girou o corpo, o machado vindo de cima como um martelo de execução. Acertou no ombro, esmagando o osso com um som surdo. O inimigo caiu de joelhos, gritando, o braço pendendo frouxo. Thorgar terminou o serviço com um chute no peito — mandando o corpo para trás, como um saco de grãos podres.
Mas aquilo não era tudo.
Da direita, surgiram mais três. Um com besta, dois com lanças improvisadas. A flecha disparou e acertou a lateral da carroça — cravou no banco onde Fiddrick estava segundos antes. Ele gritou, abafado pela manta. Naivara ergueu a mão. A luz na palma se intensificou, e uma explosão de vento empurrou os lanceiros alguns metros para trás, desorganizando a formação. Um deles tropeçou num tronco e caiu, gritando.
Tissa apareceu atrás do arqueiro.
Silenciosa, a adaga deslizou entre as costelas dele, pela lateral. Ele engasgou, tentou virar, mas os olhos já estavam perdendo o foco. Ela puxou o corpo para trás, apoiando devagar no chão para não fazer barulho.
Kael avançava já sobre o que restava. O homem que caiu estava se levantando quando recebeu uma botinada no rosto — os dentes voaram como milho. A espada desceu depois, firme, cravando na base do pescoço.
O último lanceiro hesitou. Olhou em volta. Só corpos e sangue. Trocou olhares com Thorgar, depois com Naivara — que tinha os olhos brilhando feito fogo azul. Então largou a arma e correu.
Não chegou longe.
Uma lança de luz, disparada por Aldren, perfurou suas costas e saiu pela frente do peito, queimando carne e osso. Ele tombou de lado, ainda com o movimento da fuga nos músculos. Fim.
Silêncio.
Só os sons da floresta voltando. Passarinhos retomando o canto. A brisa balançando as folhas. O cheiro de sangue começando a se espalhar pelo ar quente.
Kael limpou a lâmina na roupa de um dos mortos. Olhou para Tissa.
— Era pra ser fácil, não era?
Ela apenas deu de ombros.
Thorgar já estava vasculhando os corpos. Sem pressa. Velhos hábitos.
Fiddrick tirou a cabeça da manta.
— É... é normal isso em uma escolta simples?
Aldren respondeu sem virar.
— Sim.
A carroça seguiu sem pressa depois do confronto. O som das rodas de madeira contra a estrada voltava aos poucos, intercalado apenas pelo baque das botas na terra seca e os resmungos curtos de Thorgar. O sangue nos corpos deixados pra trás já começava a escurecer no calor da tarde. Fiddrick manteve a cabeça baixa e os olhos grudados no chão da carroça, tentando fazer de conta que nada daquilo tinha acontecido. A ideia de perder o lucro era mais fácil de aceitar do que a de morrer na estrada.
Quando o sol começou a se esconder atrás das montanhas baixas, Kael ergueu o braço e apontou com o queixo para uma clareira à esquerda da estrada. Um velho tronco caído servia como barreira natural, e havia marcas de acampamentos antigos espalhadas: pedras de fogueiras apagadas, buracos cavados, sinais de uso. Seria o bastante.
— Aqui. Vamos parar por hoje — disse Kael, já se afastando da trilha e puxando a carroça pela lateral.
Thorgar jogou a mochila no chão com um som abafado e começou a coletar galhos secos com a naturalidade de quem fazia aquilo desde sempre. Tissa tirou as botas e se sentou sobre uma pedra baixa, estalando os dedos e os tornozelos com um leve suspiro.
— Alguém monta a fogueira. Eu sou péssima com fogo — disse, mexendo nos bolsos como se procurasse algo para mastigar.
— Péssima ou preguiçosa? — perguntou Kael, colocando a espada ao lado e começando a cavar um círculo raso com a lâmina curta.
Tissa fez um gesto vago no ar, como quem não se dá ao trabalho de responder.
Aldren posicionou seu grimório sobre uma toalha de linho que ele estendeu com muito mais cuidado do que qualquer um acharia necessário naquele lugar. Tirou de dentro uma pequena vela, um punhado de sal e um frasco com um líquido âmbar.
— Se formos dormir aqui, quero pelo menos que fiquemos fora do alcance da atenção de espíritos agitados. Este lugar já foi usado por outros. O eco das coisas permanece.
— Lá vem — murmurou Thorgar, jogando um feixe de galhos no centro do círculo que Kael fazia.
— É verdade — disse Naivara, com a voz baixa, como sempre. Ela se aproximava com as mãos sujas de terra, segurando algumas raízes frescas que havia coletado. — Esse lugar tem cheiro de ferro. Como se alguém tivesse sangrado demais aqui, há tempo suficiente para a terra lembrar.
Kael parou por um segundo, olhando para a druida.
— Como você sente essas coisas?
Ela apenas sorriu. — Eu escuto.
Tissa arqueou uma sobrancelha.
— A floresta te conta segredos? Porque ela não me conta nada. E olha que eu sou bem simpática.
— A floresta não gosta de vozes altas — respondeu Naivara, já se afastando de novo.
Thorgar bufou, rindo.
— Bom, o machado não fala com ninguém, e ainda assim resolve mais do que metade das conversas.
A fogueira estava pronta, e Kael riscou uma pedra contra a ponta de sua adaga até que uma faísca caiu sobre um punhado de folhas secas. O fogo ganhou vida devagar, como se despertasse de um cochilo. Em poucos minutos, o calor já era reconfortante.
Fiddrick, que até então só tinha aberto a boca para suspirar, finalmente falou:
— Vocês fazem isso com frequência? Quero dizer... sangue, gritos, espadas nas tripas?
— Só nas terças — disse Tissa, esticando as pernas. — Mas hoje eu fiz um esforço especial porque você pagou adiantado.
— Era pra ser uma viagem tranquila — resmungou o gnomo, tirando uma garrafa pequena do fundo da carroça. — Vinte anos no ramo de especiarias e nunca precisei de guarda armada até agora. Isso diz alguma coisa, não?
Aldren o olhou por cima do livro.
— Diz que o mundo está afundando.
— Ou que seus temperos ficaram caros demais — completou Thorgar.
Kael soltou um leve riso. Foi a primeira vez que riu em dois dias.
O grupo comeu devagar. Pedaços de carne seca, frutas murchas, raízes assadas por Naivara que surpreendentemente tinham gosto de alho e limão. O silêncio entre uma mordida e outra era confortável, como se todos estivessem ocupados demais mastigando o dia.
Quando a lua começou a subir e o céu ficou salpicado de estrelas, Kael se levantou e caminhou até uma pedra mais afastada. Sentou com as costas apoiadas e os olhos no escuro além da estrada.
Tissa o observou por um momento. Depois virou-se para Aldren.
— Você já matou alguém antes de hoje?
Ele demorou para responder.
— Já. Mas nunca com prazer.
— E com culpa?
— No começo. Depois vem o cansaço.
Ela não respondeu. Só se deitou de lado, usando a capa como travesseiro, e ficou olhando o fogo que estalava baixinho.
Naivara cochilava sentada, com a coruja empoleirada ao seu lado. Thorgar mantinha-se acordado, afiando o machado com uma pedra de amolar, o som áspero ocupando o espaço entre as palavras não ditas.
O acampamento estava montado. A noite havia chegado.
E, por ora, ninguém tentava matar ninguém.
A brasa da fogueira já não iluminava com força, apenas lançava sombras laranjas que dançavam preguiçosas nos troncos ao redor. O calor era fraco, mas constante. O tipo que engana o corpo só o bastante pra continuar acordado. A lua estava baixa, parcialmente coberta por nuvens esfiapadas, e o som do vento entre as árvores era quase confortável.
Kael estava de vigia, sentado em um toco, braços cruzados e a espada encostada no joelho. Os outros dormiam, ou ao menos tentavam. Fiddrick roncava baixinho, enrolado num cobertor que ele mesmo prendeu com cordinhas como se fosse uma armadura improvisada de pano. Thorgar dormia de boca aberta, com o machado apoiado no peito, e Tissa estava deitada de lado, um olho entreaberto, fingindo um sono mais leve do que realmente estava.
Naivara surgiu sem som ao lado de Kael, como se tivesse brotado do escuro.
— Está acordado — ela disse, mais como constatação do que como pergunta.
Kael assentiu.
— Alguém precisava estar.
Ela se sentou com a mesma leveza com que andava. Um instante depois, a coruja desceu de um galho e pousou ao lado dela, quase sem fazer barulho.
— Essa estrada já foi muito usada. Antigamente. Quando as vilas ainda se falavam. Agora, a maioria das trilhas está morrendo.
— Parece que tudo está morrendo — Kael respondeu. — Menos os motivos pra continuar lutando.
Naivara ficou em silêncio por um momento. Depois disse:
— A terra ainda respira. Só está mais cansada.
Kael olhou para ela. O rosto dela era sereno, mas os olhos estavam fixos em algo distante. Havia um tipo de melancolia ali, como se ela sempre soubesse um pouco mais do que o necessário.
Do outro lado da fogueira, Tissa rolou e se sentou.
— Vocês falam como dois velhos, sabiam? Tão profundos. Tão sérios. Quase me deu vontade de escrever poesia.
— Achei que você estivesse dormindo — Kael disse.
— E perder essa conversa? Nem morta. — Ela se espreguiçou, os chifres roçando a borda de uma lona pendurada. — Sabe... a última vez que fiz uma missão parecida com essa, o contratante tentou me envenenar quando chegamos ao destino.
— E o que aconteceu com ele? — perguntou Naivara, sem mudar o tom.
Tissa sorriu. — Nada que um pouco de arsênico no chá dele não resolvesse.
Kael bufou, quase sorrindo.
— E dizem que tieflings são perigosos…
— Só os simpáticos.
Foi Thorgar quem acordou primeiro.
Não foi barulho. Foi cheiro.
O vento mudou. Trazia um odor estranho, úmido, metálico. Como ferro velho molhado. Ele sentou no mesmo instante em que Aldren também se ergueu, olhos semicerrados.
Kael percebeu o movimento e ficou de pé. Naivara já estava de cócoras, a mão tocando o solo. A coruja alçou voo sem aviso e desapareceu na escuridão.
— Sentiram isso? — perguntou Thorgar.
— Sim — disse Aldren, já empunhando o símbolo sagrado. — O ar… parece sujo.
Tissa ficou em silêncio por um segundo. Depois se levantou devagar.
— Isso não é só cheiro. Tem alguma coisa.
Naivara apertou a terra entre os dedos e franziu o cenho.
— Animais sumiram. O solo está frio. Frio demais.
De dentro da floresta, mais adiante, uma luz tênue surgiu. Fraca, azulada. Flutuava como um fogo-fátuo, mas mais baixa, próxima ao chão. E havia outra logo atrás. Depois uma terceira.
— Espíritos? — sussurrou Aldren, aproximando-se com cautela.
Mas a sensação não era de morte. Era… velha. Como se algo estivesse ali antes mesmo da estrada. Antes dos reinos.
As luzes se apagaram de repente.
O vento cessou.
E da escuridão, um som se espalhou.
Não era animal. Não era humano. Era… linguagem. Quase um sussurro, mas sem voz. Como palavras pensadas, lançadas no ar com força.
Todos ficaram imóveis.
Kael ergueu a espada.
Naivara fechou os olhos por um segundo.
Tissa já tinha desaparecido atrás de uma árvore, adaga em punho.
Fiddrick acordou com um pulo.
— Eu sonhei com um moinho andando — disse, confuso, olhando para os lados.
— Não foi um sonho — respondeu Kael.
O fogo na fogueira se apagou num estalo.
E tudo ficou escuro.
A escuridão que veio depois do estalo não era apenas ausência de luz. Era espessa, densa. Como se o ar tivesse ficado mais pesado, como se respirar exigisse mais esforço. Durante alguns segundos, ninguém se moveu. Nem os galhos se mexiam. Nem os insetos cantavam. Nada.
Kael ficou parado, espada em punho, os olhos varrendo o breu, tentando forçar os sentidos a preencherem o que a visão não alcançava. Seus músculos estavam tensos, prontos para reagir — mas a ausência de ameaça visível era pior do que o ataque em si. Era como estar dentro do momento que antecede o trovão.
Naivara tocou o chão com a ponta dos dedos e fechou os olhos. O frio do solo era artificial, recente. Um resquício do que quer que tivesse passado por ali.
— A terra... está rejeitando isso — murmurou.
Aldren girou lentamente o símbolo sagrado preso ao pulso. A ponta da cruz de ferro riscou o ar enquanto ele recitava uma oração baixa, como se medisse palavras para não chamar atenção.
— Não é morte. Não no sentido comum. Mas também não é natural.
Tissa reapareceu do lado de Kael, silenciosa.
— Nenhuma pegada ao redor. Nada se mexeu. E mesmo assim, parecia que aquilo estava perto. Muito perto.
Thorgar ergueu a cabeça lentamente de onde estava. Havia se mantido imóvel como uma pedra durante o instante do blecaute.
— Isso não foi magia. Nem truque. Isso foi... presença.
— Presença? — Tissa o olhou, sem esconder a ironia. — O que é isso, misticismo bárbaro?
Thorgar não respondeu. Continuou olhando para a escuridão entre as árvores como se esperasse ver algo sair dali com olhos.
Fiddrick finalmente quebrou o silêncio do fundo da carroça.
— Alguém acende o fogo de novo? Por favor? Eu... eu sou gnomo, não tocha.
Kael se abaixou e tentou reacender as brasas, mas elas estavam frias demais, como se tivessem sido apagadas horas atrás, não segundos. Ele franziu o cenho e bateu duas pedras. Centelhas surgiram, mas nenhuma delas pegou.
Naivara estalou os dedos. Uma pequena esfera de luz brotou em sua palma — só o suficiente para revelar os rostos do grupo e parte da clareira ao redor. O brilho parecia frágil, instável, como se o ar resistisse à luz. Ainda assim, era melhor do que nada.
A luz nas mãos de Naivara tremia levemente, refletindo no metal da espada de Kael, no machado de Thorgar, nos olhos fundos de Aldren. Tissa soltou um suspiro silencioso, como se tivesse segurado a respiração sem perceber.
— Isso vai pegar fogo ou não? — Fiddrick insistiu, tentando parecer calmo e falhando miseravelmente.
Kael fez mais uma tentativa com as pedras. Nada. Ele então estalou os dedos e apontou com a cabeça para Thorgar.
— Tem óleo na carroça. Vai lá buscar um frasco.
Thorgar não se moveu de imediato.
— Ainda pode ter algo rondando. — O tom dele era plano, sem emoção.
— E é por isso que precisamos ver. Anda.
O meio-orc praguejou baixo, pegou o machado e foi até a carroça, pisando firme. Pegou um pequeno frasco de vidro envolto em palha e jogou para Kael.
— Cuidado com isso. Peguei da parte que não fede. O Fiddrick guarda tudo como se fosse alquimia de mercado.
— Ei — disse o gnomo, indignado —, minhas especiarias salvam casamentos e derrubam febres. Duvido que seu machado faça isso.
Tissa deixou escapar uma risada curta, a primeira desde que a escuridão caiu.
Kael derramou um pouco do óleo sobre o feixe de galhos que havia preparado e tentou mais uma vez. A centelha pegou. A chama demorou, hesitou, mas finalmente ganhou força. Um pequeno clarão se ergueu, tímido mas suficiente.
— Pronto. — Kael afastou o corpo, deixando a chama crescer por si mesma.
Aos poucos, o calor voltou.
O grupo se reagrupou ao redor do fogo. Ninguém falava alto. O silêncio, embora não mais sobrenatural, era ainda desconfortável.
— Aquele frio... ele era pesado — disse Aldren, quebrando o vazio. — Não como o frio do norte. Era o tipo que quer se enfiar nos ossos.
Naivara assentiu, de olhos ainda baixos.
— A natureza não causaria aquilo. Nem uma criatura viva, não sozinha. Mas também não foi... intencional. Não como um ataque.
— Talvez só tenha passado por aqui — disse Kael.
— E deixou rastros — completou Tissa. — Em nós.
Thorgar girou o machado devagar, apoiando o cabo no chão.
— Não sei vocês, mas eu prefiro lutar com coisas que sangram. Isso? Isso me faz sentir... pequeno.
— Bem-vindo ao clube — resmungou Fiddrick. — Vocês podem ser grandes, armados, mágicos... mas quando o escuro quer apagar a luz, ele apaga. Sem esforço.
O gnomo puxou o cobertor até o pescoço e se encolheu ao lado da carroça, os olhos fixos no fogo.
— Só não me deixem por último no turno de vigia.
— Ninguém vai te deixar sozinho, Fiddrick — disse Kael. — A menos que ronque alto demais.
Fiddrick não respondeu. Estava tentando esconder o tremor nos dedos. Naivara discretamente estendeu uma das mãos sobre ele. Um calor suave, natural, percorreu o ar. A tensão no pequeno corpo relaxou quase de imediato.
— Foi só o vento — ela disse. Mas nem ela acreditava de verdade.
Os turnos foram organizados. Thorgar tomou o primeiro, sentado com o machado atravessado nas pernas, olhos perdidos na escuridão entre as árvores. Tissa dividiu com ele, mas não falava. Apenas afiava as adagas com um pequeno bloco de pedra escura, com movimentos metódicos, ritmados.
Kael dormia leve, com uma mão sob a espada e a outra sobre o peito. Aldren tentava escrever em um pedaço de pergaminho, mas a tinta manchava sempre que ele pensava demais. Naivara se manteve acordada por mais tempo que os outros, sentada próxima ao fogo, ouvindo o que o vento voltava a dizer.
Nada mais aconteceu naquela noite.
Mas ninguém dormiu direito.
O céu amanheceu limpo, com um azul tênue que mal tocava os campos ao redor. A grama ainda guardava o orvalho da madrugada, e o som da floresta, agora retomado, parecia mais vivo do que na noite anterior — como se a natureza, depois de se calar, tivesse decidido cantar mais alto pra compensar.
O grupo acordou cedo, sem que ninguém precisasse dizer nada. Kael já estava em pé antes do sol surgir, recolhendo o acampamento com os gestos de quem repete aquele ritual há anos. Thorgar comeu um pedaço de carne fria direto da bolsa, sem se preocupar com gosto ou textura. Tissa lavava o rosto com a água de um cantil, os olhos pesados pela noite mal dormida. Aldren ajeitava seu grimório dentro da mochila com a mesma reverência de sempre. Naivara ainda se mantinha sentada, os olhos fechados, ouvindo o que o vento dizia entre as folhas.
Fiddrick acordou por último, bocejando como se estivesse em uma estalagem confortável.
— Bom... dia? — disse ele, olhando em volta. — Ninguém morreu? Isso é sempre um bom sinal.
Kael não respondeu. Apenas terminou de amarrar as cordas da carroça e começou a empurrá-la de volta para a estrada. Os outros o seguiram, um por um, sem precisar de comando.
A manhã seguiu silenciosa pelos primeiros minutos. A estrada serpenteava entre colinas baixas, margeando um riacho fino que brilhava sob a luz suave. O som da carroça, os passos nas pedras, o murmúrio da água — tudo parecia em paz.
Foi Naivara quem se aproximou de Tissa, quebrando o ritmo.
Caminharam lado a lado por alguns metros sem falar. A druida andava com a calma de quem não se incomodava com o silêncio, enquanto Tissa girava distraidamente uma adaga entre os dedos, sem pressa, como se desafiasse a própria monotonia da manhã.
— Você tem medo do escuro? — Naivara perguntou, sem encará-la.
Tissa parou de girar a lâmina, mas não olhou.
— Não. Cresci dentro dele. A gente só teme o que não entende.
— E você entende o que foi aquilo?
Tissa pensou por alguns segundos.
— Não. Mas isso não me dá medo. Me dá raiva.
Naivara olhou de lado, curiosa.
— Raiva?
— Sim. Porque seja lá o que for, tirou minha vantagem. No escuro, eu enxergo. Me movo. Faço o que precisa ser feito. Aquilo me cegou... me anulou. Como se dissesse: “Você não tem controle aqui”.
Naivara assentiu devagar.
— Você gosta de ter controle.
Tissa sorriu, irônica.
— E você não?
A druida respondeu com silêncio, como se não valesse a pena negar.
Caminharam mais alguns passos.
— Sabe o que me surpreende em você? — perguntou Tissa, ainda olhando à frente.
— Hm?
— Você é calma demais. Sempre. Parece que já viu o fim do mundo e decidiu aceitar.
— Não aceitei — disse Naivara. — Só não acho que lutar contra ele com raiva vá mudar as coisas.
— Às vezes a raiva é tudo o que sobra — Tissa murmurou, quase sem perceber.
A druida parou por um instante e olhou para ela, com a serenidade de quem realmente vê.
— E você ainda tem muito guardada, não tem?
Tissa fingiu não ouvir.
Guardou a adaga no cinto e acelerou o passo, voltando para perto da carroça.
Naivara a observou por alguns segundos antes de seguir atrás. O vento soprou de novo entre as árvores, leve, como se estivesse carregando as palavras que ficaram no ar.
O resto do grupo seguia em silêncio. Mas algo tinha mudado. Como se a estrada, mesmo idêntica, tivesse dado um passo em direção a algo mais fundo.
Um novo dia tinha começado. Mas as sombras da noite ainda caminhavam com eles — baixas, discretas, e cada vez mais próximas.