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1945 chega ao fim com um ar de esperança misturado à desconfiança. Ainda é possível ouvir os gritos de sofrimento, ecos de guerra. Ainda vejo meus companheiros caindo, baleados na cabeça ou espancados até que seus rostos se desfigurem.
Não ouve?
Eu ouço.
Eu não consigo evitar.
Barulhos perturbadores.
Tiros, morte, sangue.
Gritos de desespero.
É algo devastador.
Mesmo após o fim, esses sons ecoam tão claros que eu não consigo mais viver. Algo em mim morreu naquele campo de batalha. Agora, minha alma habita um campo de batalha mental, já perdida nos horrores que presenciei.
SUMÁRIO
Capítulo 1 – O silêncio que restou
Capítulo 2 – O dia que não acaba
Capítulo 3 – Avançar ou morrer
Capítulo 4 – Um tiro, uma vida
Capítulo 5 – O garoto dos olhos mortos
Capítulo 6 – O cheiro do passado
Capítulo 7 – O inferno abriu os olhos
Capítulo 8 – Antes da guerra
Capítulo 9 – O fim da linha
Capítulo 10 – Willkommen
A lama tinha gosto de sangue velho.
Chovia há três dias sem parar. A terra engoliu corpos sem nome, botas sem donos, granadas que nunca explodiram. No fundo da trincheira, um homem tremia. Era eu. Mas já não tinha certeza.
O rosto colado na madeira úmida, o fuzil preso nas mãos como se fosse parte do meu braço. Eu rezava sem palavras. Só o som do coração tentando escapar do peito. À esquerda, alguém vomitou. À direita, alguém chorava baixo, como uma criança que sabia que não adiantava gritar.
Do outro lado, o inimigo. Mas o verdadeiro estava aqui dentro. Na cabeça. No peito. Na garganta seca.
O capitão disse que era só mais uma noite. Disse que o reforço viria. Mentiu. A morte veio primeiro. Sempre vem. Ela rasteja, ri baixo, cochicha meu nome quando tento dormir. Não há descanso onde o inferno cavou seu lar.
As explosões começaram às duas da manhã.
A terra tremeu. Os ratos fugiram primeiro. Mais espertos que nós. Estávamos enterrados vivos, e sabíamos. Quando a primeira bomba caiu, o som foi tão alto que parou o tempo. Juro por Deus. O tempo congelou. E no silêncio que sobrou, eu ouvi tudo. Cada osso quebrado. Cada carne rasgada. O som de um crânio estourando contra a parede. Como um coco. Como um brinquedo.
A guerra muda o cheiro do ar. Não era chuva. Era medo. Era merda, sangue e pólvora.
E o pior ainda estava por vir.
Depois da explosão, veio o silêncio mais pesado que já ouvi.
Não era ausência de som. Era um tipo de presença. Uma pressão. Como se o mundo prendesse a respiração esperando por algo pior. E veio.
Um homem gritava a poucos metros. Achei que era francês. Ou alemão. No escuro, sotaques viram sons animalescos. Ele gritava por uma perna. A dele, talvez. Ou de outro. Quando fui olhar, vi pedaços espalhados como carne moída sobre a lama. A carne grita. Isso ninguém te conta. Ela grita antes de esfriar.
Fechei os olhos.
Quando abri, não era mais eu.
Comecei a ver coisas. Coisas que não deveriam estar ali. Um rosto sem pele sorrindo atrás dos sacos de areia. Um soldado sem olhos apontando para mim. Sussurros dentro do capacete, como se alguém tivesse entrado pela fresta e montado acampamento dentro da minha cabeça.
"Você devia estar morto", dizia a voz.
"Você morreu ali atrás, lembra? Naquela cratera."
A cada piscada, o mundo tremia. Não era a guerra. Era a mente. O cérebro tentando escapar por qualquer fresta, antes que apodrecesse junto com o resto do corpo.
Lembro de rastejar por cima de alguém. O nome dele era Léo, acho. Ou era só o nome que eu inventei para me lembrar que ele existia. Tava morto, com os olhos abertos e a boca cheia de terra. Pisquei. A boca dele se mexeu. Disse alguma coisa. Disse meu nome. Ou eu imaginei?
Passei a madrugada assim. Entre o real e o que vinha depois.
E quando a manhã chegou, trouxe com ela algo pior que a noite: a luz da verdade. Nada do que eu tinha visto havia ido embora. Estava tudo ali. Presente. Como uma tatuagem na retina. E ainda ouço. Como agora.
Não ouve?
É só prestar atenção.
Silêncio também é som.
E o que ele diz... nunca é bom.
Naquela manhã, a lama estava mais espessa que o normal. O cheiro era de coisa morta. Tinha sangue no ar, misturado à ferrugem das baionetas. Mas ninguém falava disso. Soldado aprende a ignorar o cheiro da morte, como se fosse parte do uniforme.
O café era ralo. Um líquido morno que tremia nas canecas de ferro. Alguém tentava acender um cigarro com fósforo molhado. Outro escrevia uma carta. Dizia que ia voltar logo. Mentia pra si mesmo com letra tremida.
O comandante apareceu por volta das sete. Botas encharcadas, cara dura, olho de quem já viu o inferno e achou pouco.
— Hoje a gente avança — disse, sem rodeio.
Ninguém respondeu.
— O pelotão inimigo enfraqueceu. A gente ataca pelo flanco. Meia hora. Preparem-se.
Meia hora pra morrer.
Eu olhei pro lado. O cara que tava comigo desde o começo, o Vinícius, tremia. Não de frio. De saber. Sabia que não voltaria. E sabia que eu também não. Mas a gente sorriu. De nervoso. Porque se não rir, chora. E se chorar, não levanta.
Colocamos os capacetes, travamos os fuzis. Revistei meus bolsos três vezes. Água, munição, foto da minha mãe. Não ia adiantar. Mas era o ritual. Um jeito de fingir controle.
Quando o apito soou, tudo dentro de mim gritou pra ficar.
Mas eu fui.
Saímos das trincheiras correndo. Vinte, trinta homens. Barro até o joelho. Tiros cruzando o ar como abelhas furiosas. Vi gente cair no primeiro passo. Cabeça estourando como melancia. Vi intestino escorrer da barriga de um sargento. Ele caiu de joelhos e tentou segurar o que escapava. Como se ainda pudesse se recompor.
O chão explodia.
A fumaça engolia tudo.
O grito do comandante virou um rugido ao longe:
— AVANÇA, AVANÇA!
Mas onde? Não havia frente, nem direção. Só caos.
Corri. Atirei. Não sei se acertei alguém. Sei que o Vinícius tropeçou numa mina. Sumiu. Não sobrou nem pra enterrar. Um segundo ele tava do meu lado. No outro, só fumaça e um cheiro de carne queimada que grudou no meu nariz até hoje.
Quando o barulho cessou, eu estava sozinho. Deitado no chão, respirando poeira, o sangue de outro escorrendo pelo meu pescoço.
O avanço? Um fracasso. Não ganhamos território. Não ganhamos porra nenhuma. Só perdemos. Homens, tempo, partes da alma.
O comandante sobreviveu. Disse depois que “era o preço da guerra”.
Mas ele não viu o rosto do Vinícius no instante antes da explosão.
Eu vi.
E nunca mais dormi.
Choveu sangue ou foi só impressão?
O céu inteiro ficou vermelho. Uma cor de febre, de carne viva. O ar era fumaça e enxofre. As balas rasgavam o vento. Gritavam como vozes desesperadas. Pareciam vir de todos os lados — até de dentro da minha cabeça.
Eu corria. Não sabia mais por onde. O chão cuspia fogo. As trincheiras viraram buracos de morte. Um companheiro gritou meu nome. Ou talvez fosse minha mãe. Não sei. A voz vinha de trás, de cima, de dentro.
O comandante gritou de novo, agora ensanguentado, com um pedaço do rosto pendurado como couro rasgado.
— CONTINUA, PORRA! PRA CIMA DELES!
Mas quem eram “eles”?
Só via vultos correndo. Vultos que não morriam mesmo baleados. Um deles caiu, metade do corpo pendurado num arame farpado, e mesmo assim se arrastava na minha direção. Sem olhos. Só dentes. Rindo. Eu atirei. Uma, duas, dez vezes. A arma clicou seca. Nada.
Fugi.
Caí num buraco. Pisei em algo mole. Era alguém. Era o Felipe. Ou o corpo dele. Tinha uma cruz desenhada no peito com faca. Sangue escuro. E os olhos... abertos. Ainda piscavam. Ele me disse:
— Não existe volta. Você já morreu.
Ouvi uma risada.
Virei o rosto.
Era eu mesmo.
Eu. Com o uniforme limpo. Sem ferimentos. Sem medo. Em pé na beira do buraco, olhando pra mim com desprezo.
— Você fracassou — disse minha cópia. — E vai fracassar de novo.
Tentei subir. Ele me chutou de volta pro buraco.
Tiros acima da cabeça.
Explosão.
Terra nos pulmões.
Silêncio.
Só o som do meu próprio grito abafado por lama. E o gosto de ferro na boca.
Acordei gritando.
Tentei me levantar, mas estava amarrado.
O teto era uma lona furada, costurada com arame. Luzes fracas balançavam no vento. Moscas rondavam meu rosto. Uma delas pousou na minha língua. Tentei cuspir, mas minha boca estava seca. Gritar só fazia minha garganta sangrar.
Um homem apareceu. Máscara branca, avental sujo. Os olhos não piscavam.
— Você teve um colapso — ele disse.
Como se isso fosse uma dor de cabeça.
Como se eu ainda fosse inteiro.
Olhei para o lado. Havia camas. Mas não tinham pacientes. Tinham pedaços. Metade de um soldado com o peito aberto, rindo baixinho. Um sem mandíbula, gorgolejando bolhas de sangue. Um outro amarrado também, mordendo o próprio braço até o osso.
O “hospital” era um cemitério vivo.
O médico voltou com uma seringa. O líquido era preto.
— Vai te acalmar — ele mentiu.
Tentei me soltar. Comecei a chorar. Mas nada disso importa nesse lugar. Ninguém escuta choro em hospital de guerra.
A agulha entrou devagar. Queimava por dentro. Um fogo frio subindo pelas veias.
O mundo ficou... viscoso. As luzes pingavam do teto como cera. O teto se abriu. Vi olhos lá em cima. Muitos. Me encarando.
Fechei os meus.
Quando abri de novo, estava no campo. De novo. No meio da lama. Fuzil na mão. Mas não era real. Eu sabia. Meus companheiros estavam ali — todos os que morreram. Sorriam pra mim. Sem pele. Sem olhos. Só sorrisos.
E o comandante atrás de mim.
— Levanta, soldado — ele gritou. — A guerra ainda não acabou.
Mas eu não conseguia mais levantar. Não tinha mais pernas.
Olhei pra baixo.
Onde deviam estar meus joelhos, havia apenas carne aberta e vermes dançando.
E mesmo assim... eu comecei a me arrastar.
Porque a guerra nunca termina.
Acordei no escuro.
Não sabia onde estava. Nem quando. Só o cheiro era familiar: ferrugem, mofo, carne podre.
Minha pele coçava. Quando olhei, vi larvas saindo do meu braço. Gritei. Arranquei a pele com as unhas. Mas debaixo dela... não havia sangue. Havia lama. Como se eu fosse feito do chão que enterrei meus amigos.
Uma voz sussurrou no canto da sala:
— Eles voltaram por você.
Virei rápido.
Nada.
Mas o som continuava. Dentro da cabeça agora. Risadas. Marchas. Gritos. Um coro.
Um espelho. Eu me vi. Mas não era eu.
Fardado com o uniforme alemão. As mãos cobertas de sangue. Um sorriso que não me pertencia.
— Você matou todos eles — disse meu reflexo.
— Você gostou.
— Você ainda gosta.
Bati no espelho. Ele riu. A rachadura cortou meu rosto — ou o dele — em dezenas de pedaços. Cada um mostrando um “eu” diferente. Um chorava. Um arrancava os próprios dentes. Um só olhava em silêncio, com olhos pretos e fundos.
Eu me ajoelhei no chão e comecei a rezar. Mas as palavras não saíam. Saíam sons. Como latidos. Como um animal.
A porta se abriu com estrondo.
— ELE TÁ PRONTO! — alguém gritou.
Braços me puxaram. Algemas. Luz forte. Marcha. Gritos.
E de repente, a realidade voltou.
Barro. Frio. Fuzil. A trincheira outra vez.
— Respira, soldado — disse uma voz conhecida.
O comandante.
— O último ataque custou caro. Mas você voltou. Estamos com poucos homens. Vai ter que ir na frente.
Eu olhei em volta. Todos me encaravam. Olhos vazios. Mortos em vida. Como eu.
Abaixei o rosto, respirei fundo.
O chão tremeu.
— Hora de avançar — ele disse, entregando o fuzil.
Eu segurei a arma. Meus dedos tremiam. Mas eu fui.
Porque aqui, morrer é rotina.
E enlouquecer... é só mais um estágio.
A fumaça cobria tudo.
Só dava pra ver vultos. Formas correndo entre buracos e arame farpado. A chuva caía fina, misturada com terra e sangue fresco. O fuzil escorregava nas minhas mãos. Eu apertava mais forte. Se caísse, eu morria.
Um disparo cortou o ar — perto.
Me joguei no chão. Respirei o barro. Tossi terra. E esperei.
Passos.
Um vulto se aproximava. A sombra de um homem. Baixo, curvado. Fardamento diferente. Alemão. Trazia uma pistola na mão. Procurava por alvos, como um cão farejando carne.
Levantei devagar. Mirei.
O dedo no gatilho, pesado como chumbo.
Ele virou o rosto e me viu.
Jovem. Não devia ter mais de dezoito.
Seus olhos se arregalaram. Ele tentou erguer a arma.
Atirei.
Uma vez.
A bala entrou entre os olhos.
Ele caiu como um boneco sem corda.
Silêncio.
Me aproximei. As mãos ainda tremiam. O coração batia na garganta.
O soldado jazia ali. Olhos ainda abertos. Boca entreaberta, como se fosse dizer algo. Mas já era tarde.
Tinha um retrato no bolso da farda. Uma mulher e uma criança pequena.
Talvez esposa. Talvez filha.
Ele carregava esperança no peito. E eu arranquei isso.
Fiquei olhando por segundos longos demais.
Minhas botas cobertas de sangue dele.
Minhas mãos também.
Engoli seco.
Então o apito do comandante cortou o ar:
— AVANÇAR!
Corri. Não por bravura. Por pânico. Como se aquilo fosse me afastar da culpa.
Mas a cada passo, eu pensava:
O que esse homem deixou pra trás?
Quem espera ele voltar?
Quem nunca vai saber como ele morreu?
E pior...
Quem vai me esperar voltar?
Se eu voltar.
Corri. Gritei. Atirei em mais sombras.
Mas aquele rosto não saiu mais da minha cabeça.
Os olhos dele me seguem até hoje.
Porque foram os primeiros que eu apaguei.
E a culpa, essa... essa não tem trincheira onde se esconder
Não dormi.
Fechava os olhos e ele aparecia.
O inimigo.
O garoto.
O buraco entre os olhos.
Ele não gritava, não chorava, não falava nada.
Só olhava. Sempre direto pra mim. E piscava. Mesmo morto.
A primeira vez que vi foi no meio da patrulha. Estávamos varrendo uma área tomada por escombros e corpos. Um cheiro de carne azeda e chuva impregnava tudo. Um soldado ao meu lado falou algo. Nem ouvi. Eu só... vi.
No fim da rua destruída, ele estava lá.
Em pé.
Mesma roupa, mesmo sangue no rosto.
Imóvel.
Pisquei e ele sumiu.
Tentei me convencer que era só memória.
Mas à noite, quando parei pra mijar atrás de um muro, ele apareceu de novo.
Sentado sobre os tijolos, pernas balançando como uma criança.
Sorriu.
Apontou pra mim.
— Você é pior que eu — ele sussurrou.
Olhei pra trás, assustado. Ninguém ali. Só o vento.
Voltei pro grupo calado.
Comecei a andar mais rápido. Depois mais devagar. Depois me perdi. Dei a volta em mim mesmo. Quando percebi, estava longe. Separado.
E então, de novo, ele apareceu.
Sentado em cima de um corpo putrefato. O corpo de Felipe. Meu amigo. O garoto riu.
— Eles confiam em você — ele disse. — Ainda.
Levantei o fuzil.
Apontado pra ele.
— Some da minha cabeça — eu sussurrei.
— Isso não é a sua cabeça, soldado — ele respondeu, com a voz de um pesadelo.
O chão tremeu.
Explosão.
O mundo virou pó.
Acordei no meio dos escombros. Sozinho.
Ouvi tiros ao longe. O pelotão estava engajado. Eu não. Eu estava perdido no nada. Na terra de ninguém. E a única coisa ao meu lado era ele.
O garoto.
Mortíssimo.
Sorrindo cada vez mais.
O céu era limpo.
Sem nuvens, sem fumaça, sem gritos. Azul inteiro, como uma pintura que só existe nos domingos da infância.
Estava deitado na grama do quintal. O som do rádio tocando baixinho dentro de casa. Minha mãe cantarolava enquanto lavava louça. O cheiro de sabão e bolo recém-saído do forno se misturava ao perfume das flores que ela cuidava com tanto carinho.
Meu pai estava ali também. Lendo jornal, com os pés descalços, sorrindo de canto. De vez em quando me olhava e dizia:
— Aproveita esse momento, filho. Porque um dia você vai sentir falta até do vento soprando no rosto.
E eu ria. Não entendia. Só sentia.
E então ela apareceu.
A mulher do retrato que eu guardava dobrado dentro do casaco, entre o peito e a bala. Ela veio correndo pelo quintal, rindo, me abraçando por trás. Me chamando pelo nome. Com aquela voz que hoje eu não consigo mais lembrar direito, só o eco, só o tom.
— Você prometeu voltar, lembra? — ela disse, encostando a testa na minha.
Eu chorei.
De felicidade.
De paz.
De tudo o que a guerra não consegue destruir, mesmo quando tenta.
Mas aí... o cheiro mudou.
Doce no começo.
Depois metálico.
O cheiro de sangue invadiu o ar como um ladrão.
As flores murcharam. O céu escureceu. O rádio chiou.
E no lugar da minha mãe, uma mão fria agarrou meu braço.
Abri os olhos.
Lama.
Pólvora.
Corpos gritando.
— LEVANTA, PORRA! — o tapa estalou como um tiro.
O comandante me encarava com olhos de fogo.
— ESTÃO INVADINDO A TRINCHEIRA! LEVANTA OU VOCÊ VAI MORRER AQUI, SEU MALDITO!
Me puxou pelo colarinho. Outro tapa. E outro.
Voltei.
Aos poucos.
O som real entrando aos poucos na cabeça:
gritos, tiros, granadas explodindo.
Vi homens correndo, sangue jorrando, pedaços voando.
Peguei o fuzil no chão, cambaleando.
Olhei pro lado.
E lá estava ele de novo.
O garoto que eu matei.
Mas dessa vez, ele não sorriu.
Só apontou pra mim e disse:
— Agora é você quem corre.
O inferno começou com um apito.
Um som agudo, longo, cortando o ar como faca.
Logo depois, o céu virou um mar de fogo.
Morteros.
Explosões caindo em cima da trincheira, abrindo crateras, lançando pedaços de homens no ar como bonecos de pano.
A lama virou tinta vermelha.
Gritos de agonia.
Correria.
Confusão.
— POSIÇÃO! TODO MUNDO NA POSIÇÃO! — berrou o comandante.
Mas era tarde. Eles estavam vindo.
Centenas.
Talvez milhares.
Saltando da neblina com olhos de ódio, rostos cobertos de tinta, baionetas reluzindo. A tropa inimiga parecia não ter fim. Uma muralha viva de destruição.
Peguei o fuzil. Mirei. Atirei.
O primeiro caiu.
O segundo tropeçou no corpo dele.
Mas não adiantava.
Eles vinham.
O comandante veio correndo, se posicionando ao meu lado.
— SEGURA ESSA LINHA, SOLDADO! SE ELES PASSAREM POR NÓS, PASSAM POR TODOS!
E então... o tempo parou.
Um tiro seco.
Um estalo agudo, direto.
O crânio do comandante explodiu na minha frente.
Parte do rosto voou no meu uniforme.
Os olhos ainda se mexiam. A boca ainda abria e fechava sem som.
Eu gritei.
Mas não me ouvi.
Explosão.
Fui jogado no chão.
Tentei levantar.
Mãos me puxaram.
Cinco, seis homens.
Inimigos.
Chutes nas costelas, socos no estômago, na cara. A dor era um tambor dentro do meu crânio.
Senti dentes quebrando.
Sangue escorrendo pela garganta.
Uma voz em alemão gritou:
— Lebendig. Ele é útil.
Me algemaram. Cobriram minha cabeça com um saco encharcado de sangue e lama. Me arrastaram.
Gritos ficaram pra trás.
Amigos gritando meu nome.
Ou talvez fosse só minha cabeça.
Fui carregado por quilômetros.
Horas, talvez dias.
Sem comida. Sem água.
Só com o gosto de ferro na boca.
Até que tiraram o saco.
Estava em um porão escuro, paredes de pedra, um gancho pendurado no teto.
E à frente... um homem de jaleco.
Com luvas.
Com bisturi.
E olhos vazios.
— Willkommen — ele disse, sorrindo.
— Vamos ver quanto um homem pode aguentar antes de esquecer quem é.
Livro em andamento!